segunda-feira, 18 de março de 2019

Como evitar novos massacres?




A gente quer saber por que alguém faz algo tão grotesco como aqueles dois rapazes que mataram 8 e feriram 11 pessoas indefesas numa manhã comum de verão em Suzano, em 13\3\2019. Quando essas tragédias acontecem, perguntar “por quê?” é uma tentativa inicial de chegar à resposta que mais interessa: como evitar que aconteça de novo. Porque ninguém quer estar à mercê da brutalidade aleatória, e porque ninguém quer se ver um dia no lugar dos familiares dos homicidas. Junto com a dor compartilhada e o luto, busca-se um rumo, uma imagem que recomponha o cenário estilhaçado pelo absurdo.

Quem tem filhos pequenos quer saber o que fazer para que adolescentes (os meus, os seus, os deles, os nossos) não se transformem naqueles matadores. No geral, essas tragédias suscitam debates sobre políticas de segurança, e é mesmo importante discutir o acesso a armas, o papel dos funcionários das escolas etc. Também há debates necessários sobre a cultura da violência nos filmes e games, no discurso (inclusive de autoridades) que legitima o uso da força letal, no bullying, nas artimanhas de grupos radicais que promovem crimes de ódio etc. Mães e pais têm muito interesse nesses temas, mas nenhum deles interessa tanto quanto as causas da evolução de uma criança à condição de autor de massacre.

A chave na infância

Evitar que essa evolução ocorra é a chave de todas as políticas, e sabe-se — até intuitivamente — que ela está no cotidiano das famílias, na rotina dos adultos que cuidam de crianças. A lógica é simples: se todos conseguirem apoiar adequadamente o desenvolvimento dos filhos, reduz-se a probabilidade de que os futuros adolescentes e adultos venham a representar riscos e perdas à comunidade. A partir daí, as políticas de segurança tendem a ser mais baratas e eficazes. Essa lógica é um raro consenso nesses tempos de polarização ideológica, está presente nos argumentos da esquerda, do centro e da direita.

Faz sentido pensar que a dupla de assassinos da escola Raul Brasil poderia ter tido um futuro melhor, se ambos tivessem desenvolvido algumas capacidades a partir da infância. Não se sabe exatamente quais fatores se alinharam para resultar na tragédia, mas é estatisticamente evidente que a dificuldade de se enturmar e de namorar, o assédio moral e até a depressão são causas insuficientes para se planejar e executar uma chacina seguida de suicídio. Alguma coisa, ou alguma falta, fez aqueles caras serem incapazes de lidar com os desafios do convívio, e parece tê-los levado à deep\dark web, onde psicopatas sem causa e terroristas apocalípticos dão plantão para manipular ressentimentos.


Estrutura emocional

Ser zoado no pátio é revoltante, ser gelado pela galera é terrível, sentir-se feio e não desejado é muito triste. Dá vontade de se vingar, de fazer sofrer e até de matar, sim. Quem cresceu num ambiente minimamente afetivo, com limites e suporte para construir uma estrutura emocional suficientemente sólida, também sofre nessas situações, sente raiva e pensa em vingança, mas consegue transformar esses impulsos e pensamentos em alguma nova perspectiva de vida. A capacidade de afeto (empatia, compaixão...) ajuda a processar o impulso de infligir sofrimento aos outros, mesmo sob frustração e dor. Porque a dor de fazer mal é maior, o mal turva o próprio bem-estar e reduz a felicidade.

A vida é dura para a grande maioria dos terráqueos, e injusta para muitos, mas é preciso estar doente, psíquica e\ou emocionalmente, para começar a achar que ela vale menos do que a morte. Essa condição pode surgir em qualquer idade, mas a resiliência e a capacidade de desejar, de fazer planos e perseguir seus sonhos, faz com que a maioria siga em frente, insistindo, experimentando, perdendo e ganhando — e chorando em solidariedade às vítimas de um massacre. Também essas competências são construídas na infância, na relação diária das crianças com os adultos que cuidam delas.

Trabalho com as crianças

Mas, se a questão é como evitar que outros adolescentes se entreguem às trevas, e se a chave da solução é o cuidado na infância, é necessário ir mais fundo e além daquela resposta padrão, tipo “tudo começa na família”. A ideia da “família estruturada” está longe de ser resposta para o desenvolvimento da empatia, da resiliência, da capacidade de desejar e trabalhar por seus sonhos, assim como de outras competências emocionais. Sejam casais comuns, sejam famílias com formatos diversos, sejam cuidadores dos filhos dos outros, todos precisam arregaçar as mangas e trabalhar arduamente nessa tarefa de criar seres humanos. Parece óbvio, mas não é.

Esse trabalho é difícil, chato e cansativo, porque ocorre justamente naquela peleja diária de choros, birras e traquinagens, na mesmice tediosa dos dois primeiros anos de vida dos bebês, na administração da rotina de sono, banhos e refeições da molecada, na lida com as explosões de raiva diante dos limites... Em muitas “famílias estruturadas” nem sempre há disposição para esse esforço. Troca-se limite por negociação, frustração por compensação, choro e revolta (“me poupe…”) por uma intelectualização precoce de crianças que se comportam bem hoje, mas que terão sérias dificuldades para lidar com os nãos apresentados pela vida. Por preguiça, comodidade, desconhecimento ou tudo junto, deixa-se que os pequenos cresçam sem passar pelas experiências necessárias para transformar seus impulsos primitivos em sentimentos.


Novos desafios para quem cuida

Em escala social, esses lapsos no cuidado às crianças podem ter impacto nas epidemias de obesidade e drogadição, na alta ocorrência de depressão e dependência de medicamentos, por exemplo. Adolescentes emocionalmente frágeis também estarão mais suscetíveis a relações tóxicas, e nelas inclui-se a submissão a grupos e líderes manipuladores. Não se trata de uma sentença de condenação, mas é evidentemente alta a probabilidade de uma evolução problemática para a adolescência e a vida adulta. Ainda mais quando cresce a oferta de drogas de rápida adicção, de incentivos ao uso de armas e de causas exóticas para justificar e facilitar a vingança suicida.

Esses desafios adicionais estão hoje na agenda de mães, pais e cuidadores de crianças — em todos os tipos de arranjo familiar —, e são grandes motivos para que assumam de fato suas funções. É indispensável que a evolução para a adolescência tenha uma perspectiva de crescimento e realização, que o adolescente crie para si um valor de vida suficiente para resistir aos obstáculos, às tristezas e iras, às seduções e manipulações, suficiente para atiçar a criatividade e dar-lhe forças para transformar sua realidade. Isso só é possível com a insubstituível ajuda dos adultos, em cada momento aparentemente banal da rotina com os pequenos.


David Moisés e Angela Minatti

Leia também no livro:
Limites para o futuro ………. p.47


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