domingo, 9 de outubro de 2016

Como é bom não ganhar presente

Querer e não ter, pedir e não ganhar, tentar e não conseguir, procurar e não encontrar, esperar e não alcançar. A frustração que se sente nessas situações é desconfortável, e por vezes dolorosa. Mas, de tão comum na vida - você não ganha tudo o que pede, certo? -, ela se torna uma parte da experiência diária, um daqueles incômodos que fazem a gente mudar de posição, se conformar e seguir em frente, buscar uma outra saída, inventar outro jeito, formular uma nova ideia.

Para quem ainda é pequeno, com pouca experiência em frustração, pedir e não ganhar é uma situação dramática e revoltante. Quanto menor a criança, quanto mais próxima daquela onipotência original da infância, mais fortes são os sentimentos causados pelo mundo que teima em desobedecê-la. Por isso a frustração das vontades da molecada resulta num incômodo bem maior, de proporções coletivas.

Só com muita prática é que os pequenos conseguem criar seu próprio jeito de lidar com esses ossos do ofício de viver. Precisam crescer com quilometragem suficiente pra aguentar a decepção com a lembrancinha no lugar do presente, pra suportar o cancelamento da viagem de férias ou a redução no orçamento das baladas, pra sofrer normalmente - sem agredir - quando a mina não tá a fim de namorar, pra lamber as feridas e continuar a vida quando o nome não sai na lista de aprovados ou quando a promoção de cargo não vem.

Dá para notar, então, como a frustração é importante no dia-a-dia das crianças. Ter prática e experiência nisso significa viver situações reais que provocam sentimentos intensos, como a raiva, a inveja e a tristeza, que podem então ser processados, refinados, lapidados e integrados a uma estrutura emocional mais humana e menos bruta. A frustração é o disparador dos sentimentos primitivos com que as ferinhas nascem. Ao dispará-los, permite aos pequenos conhecer e elaborar o que sentem, humanizar aquilo que originalmente é meio selvagem.

É assim - e somente assim - que um jovem ou um adulto podem um dia tirar de letra os dissabores variados que abundam na sua existência de mortais. Não porque calejaram e se amansaram com as sucessivas frustrações, mas porque os sentimentos trabalhados lhes são menos corrosivos, não cegam nem impedem o pensamento; ao contrário, esses sentimentos ampliam a capacidade de discernimento e a compreensão. Crescer sem frustração seria como crescer sem exercitar o corpo, sem tonificar os músculos.

Ninguém precisa programar frustrações para exercitar a prole, claro. A vida real se encarrega disso, com as limitações naturais, sociais, econômicas, políticas, culturais… O problema está do outro lado: tentar evitar, abrandar ou anestesiar a frustração da molecada.

Mesmo as mães e os pais mais conscientes são tentados a poupar seus filhotes dessa experiência, ainda que reconhecendo sua importância. A ira primitiva, a inveja e os outros sentimentos brutos disparados nessas horas reverberam com muita força nos genitores, há traços de identificação com o sentimento das crias, há um considerável trabalho emocional para os adultos também.

Tentativas de escamotear frustrações acontecem também porque há adultos que ficam com dó, não suportam ver “sofrimento”, querem formar filhos vencedores, querem que a prole tenha aquilo que nunca puderam ter, ou simplesmente não têm saco pra ouvir criança chorando. Nesses casos, evitam situações que envolvam risco de gerar frustração e (como isso só é possível numa parcela diminuta da existência) tentam ludibriar os pequenos quando a coisa acontece. A estratégia envolve até negar que o fato frustrante ocorreu, ou dar-lhe outro significado, ou ainda minimizar a frustração desvalorizando o fato como algo sem importância.

Lidar com a frustração da molecada exige muita energia, disposição, paciência e determinação. Porque essa é a hora do limite, hora de permitir e acolher a reclamação, o choro, o esperneio, a birra, a manha etc, sem oferecer nada para compensar ou consolar, sem tentar mudar de assunto, sem explicar que acontece por causa disso ou daquilo, sem criticar, sem negociar. É hora de dar colo e carinho apenas. As crianças precisam dessa experiência vital, e vão insistir para tê-la. Ou seja, tentar evitar a frustração acaba por intensificar as situações e o disparo dos sentimentos primitivos. Melhor encarar o trabalho já, e não deixar que ele se multiplique depois.

David Moisés e Angela Minatti

Leia também no livro:
Ensinar afeto sai mais em conta ............... p.56



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