segunda-feira, 9 de junho de 2014

Palmada e a lei





A Lei da Palmada é uma pavonice de políticos e celebridades, é conceitualmente vaga, propõe-se inutilmente a regular o que já está regulado pelo Código Penal, cria algumas incertezas e deve acabar virando algo juridicamente inócuo. São vários os defeitos apontados por especialistas de diversas constelações do conhecimento desde que a ideia começou a tramitar na Câmara dos Deputados, com o projeto de lei 2654/2003, até a sua aprovação pelo Senado em 4/6/14, na forma do PLC 58/2014, encaminhado para sanção presidencial. Um aspecto parece ser positivo: ela é uma lei.

Campanhas contra chineladas e palmadas existiram e existem, mas não têm a força suficiente para provocar reflexão maior numa sociedade acostumada aos castigos físicos como recurso educativo. O Brasil tem uma longa tradição de manuais de puericultura que ainda no século 21 prescreviam aos genitores infligir dor a seus petizes como forma de discipliná-los. É claro que hoje não pensam assim os que admitem bater no bumbum como última das soluções pedagógicas ou que advogam o tapinha leve, mas é forte o atavismo ou a conveniência que mantêm o exercício renitente desse poder. Em 2010, eram 54% os brasileiros contrários a qualquer medida legal para coibir essas práticas.

Crianças mimadas e despóticas, produzidas em escala crescente, servem de munição para quem diz que está faltando palmada. Faltam limites, que nada têm a ver com palmadas (abordamos isso nas pgs. 43 a 60). Dar limites dá mais trabalho, exige discernimento, disposição, firmeza e respeito pela criança. Isso é o que funciona, mas requer um preparo que os pais dificilmente recebem em suas famílias e que não encontram nos guias de autoajuda. Para piorar, na era ilusionista do consumidor-rei, do conforto permanente e da satisfação imediata com 36 meses para pagar, é difícil optar por algo que exija mais empenho em vez de clicar na tecla Paft “quando a paciência acaba”. Depois, curte-se no Face aquele post tipo “obrigado mamãe pelas surras que fizeram de mim um homem digno” e sossega-se a consciência.

Argumentos e piadas

Assim como posts, não faltam bons argumentos contra essa lei incômoda. Preocupa, por exemplo, o fato de estarmos com ela recorrendo ao direito penal para forçar os pais a serem melhores pais. Cria-se assim mais uma grande demanda ao Judiciário, já assoberbado e moroso. Além disso, nosso aparato judicial tenderia historicamente a ser muito intrometido e abusivo quando trata dos domínios domésticos. Tem ainda o argumento de que o Brasil cria leis demais com educação de menos. E tem também as piadas - não intencionais, em alguns casos -, como a dos pais protestando por não poderem mais “educar” seus filhos, crianças abusando da proteção legal para extorquir mimos e presentes etc.

A Lei da Palmada não deve mudar nada para quem se acha no direito de dar uns tapas esporadicamente, e ninguém precisa se preocupar com vizinhos pescoçudos inventando coisas para denunciar ao Conselho Tutelar ou à polícia. A imprecisão do texto torna difícil sua aplicação. Mas essa imprecisão pode ser positiva justamente por fazer a sociedade dedicar um tempo a pensar e a tentar definir o que seria sofrimento físico, humilhação e ridicularização impostos por um adulto a uma criança ou adolescente, por um pai a um filho. Aliás, esta reflexão induzida, e até mesmo forçada, é uma das razões pelas quais existem as leis. Neste caso, a lei transmite a decisão fundamental da sociedade (afinal, bem ou mal, nós elegemos aqueles caras no Congresso) de dizer não aos castigos físicos e psicológicos.

Filhos testam e irritam seus pais porque precisam

Essa interdição de um caminho costumeiro nos leva a sair do piloto automático e a pensar em rotas alternativas, a traçar novos circuitos simbólicos e a ser gradativamente mais capazes de empreender outras atitudes, que não precisam nem rumar na direção das palmadas. Filhos testam e irritam seus pais porque precisam: enquanto fazem isso, conseguem construir algumas das capacidades psíquicas e emocionais necessárias à vida neste mundo. Pode-se atuar nesse processo dando o suporte adequado, sem tapinhas frios e pretensamente pedagógicos (linguagem estranha essa...), sem que a irritação natural se agrave desnecessariamente e predomine a ponto de levar a um tabefe - que significa a perda de controle e a derrota completa.

Há um caminho razoável, com diversas possibilidades de cuidado que podem ser conhecidas e exploradas quando se bloqueia o acesso fácil e viciado à solução da palmada. A lei pode não pegar, ou pode pegar e provocar efeitos colaterais danosos - devemos estar prontos a corrigir. Enquanto isso, podemos aproveitar para dar mais um passinho à frente no nosso vacilante processo civilizatório.

David Moisés e Angela Minatti