terça-feira, 12 de julho de 2016

Remédio para indisciplina e desinteresse na escola





Está ficando “normal” usar remédios para resolver problemas de comportamento de crianças na escola. Há alguns anos essa ideia perigosa começou a circular entre pais e educadores como solução moderna e rápida para casos de hiperatividade. Logo a rebeldia e a indisciplina, a falta de interesse nas aulas e até algumas dificuldades de aprendizagem passaram a ser vistas como sinais de hiperatividade. Alguns estudos nas áreas de psicologia e sociologia demonstraram essa medicalização na rotina escolar, e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) chegou a alertar para o uso “muito difundido” do metilfenidato (Ritalina e Concerta), inclusive como “droga da obediência” e como “instrumento de melhoria de desempenho”.

O relatório da Anvisa, de 2012, é citado num estudo mais recente, de 2016, que analisou escolas públicas e particulares de Florianópolis e relevou como essa solução química está incorporada ao discurso pedagógico. A pesquisadora Karina Giusti, da Universidade Federal de Santa Catarina, entrevistou educadores numa amostragem de oito escolas e detectou uma visão dos “comportamentos infantis em termos biológicos e neuroquímicos”, o que contribui para uma “patologização” da vida das crianças. Ao mesmo tempo, os educadores se sentem “perdidos” diante do aumento do número de crianças submetidas ao uso de psicofármacos, relata a pesquisadora.

Essa tendência de associar o funcionamento psíquico a bases orgânicas é antiga, e já em 2007 um estudo da USP alertava para a chegada dessa mania às escolas. Nele, Renata Guarido chama atenção para a “psiquiatrização do discurso escolar”. Há um grande risco quando se coloca tanta importância em técnicas, seja para dominar conflitos ou para atingir competências, porque a educação dos pequenos não é apenas instrução acadêmica. Junto com o aprendizado intelectual, eles estão se esforçando para se constituir como sujeitos no mundo. Os conflitos são parte indispensável nesse processo, e por isso exigem tanto trabalho dos educadores.


Esse assunto já esteve na mídia e provocou alertas importantes, mas parece que a tendência não se reverteu. Pior, a normalização da ideia de medicalizar a indisciplina e o desempenho ruim na escola cria um efeito manada, tipo todo-mundo-usa, uma sensação de que usar remédio não faz tão mal assim… Tudo isso se agrava com a própria realidade do cuidado às crianças, repleta de trabalho duro e desafios naturais, e com os novos desafios surgidos da falta de cuidados adequados (a molecada cria mais problemas na escola quando não está recebendo esses cuidados). No fim, somam-se ainda mais justificativas para buscar soluções modernas e rápidas para toda essa “hiperatividade”.

Tudo se agrava também pelo próprio uso dos remédios. Estudiosos do tema já suspeitavam que as crianças poderiam se tornar menos sensíveis à droga, e os educadores parecem confirmar esses temores. No trabalho de Giusi eles relatam que a medicação inicialmente “ameniza os efeitos dos transtornos, mas, com o tempo, os alunos voltam a apresentar os mesmos comportamentos que levaram ao diagnóstico”. Daí vem a aplicação de doses maiores ou de substâncias mais potentes.

Estudos sobre o impacto desses medicamentos nas crianças certamente virão à luz em breve, mas por ora é preciso contar com pesquisas que mostram, por exemplo, alterações em marcadores neurais de plasticidade no cérebro de ratos jovens, indicando que o metilfenidato pode alterar propriedades básicas do córtex pré-frontal. De qualquer forma, é bom lembrar que não estamos falando de efeitos colaterais em pacientes que necessitam claramente do uso da substância, e sim de crianças submetidas à droga como medida de controle comportamental, com base em diagnósticos questionáveis ou flagrantemente equivocados.


Ninguém duvida do trabalho árduo que têm os educadores na rotina da sala de aula, nem da crescente dificuldade que eles enfrentam ao receber na escola gerações de crianças “mais difíceis”, enquanto sofrem pressões por desempenho em sua missão de formar homens e mulheres de sucesso. É sintomático, aliás, que a medicação seja um recurso mais naturalmente aceito entre aqueles que trabalham com turmas maiores. Mas é preciso lembrar que não existem soluções modernas e rápidas para lidar com a rebeldia ou para fazer os pequenos gostarem de estudar. A experiência do dia a dia tem demonstrado que a promessa química não resolve, e pode até mesmo piorar as coisas.

Nos conflitos, nos sinais de desinteresse e na bagunça aparecem os sentimentos brutos, a matéria-prima com a qual se constitui um sujeito, uma pessoa única com suas capacidades em desenvolvimento ao longo da vida. Os problemas, portanto, poderiam ser vistos como objeto do trabalho dos professores - assim como dos pais -, e não como mero desvio no cronograma escolar.

Enquanto não se inventam uma droga ou uma técnica que façam a mágica de transformar os impulsos primitivos das crianças em sentimentos humanos razoavelmente lapidados, ou que substituam o trabalho dos pais e cuidadores na garantia de um ambiente de desenvolvimento com limites e afeto, o caminho continuará sendo o de sempre: cuidar dos pequenos a cada dia, reconhecendo que as dificuldades e chatices da rotina são, na verdade, os momentos cruciais para eles começarem a sentir algum gosto pela escola, pelo convívio com os colegas, pelo mundo.


David Moisés e Angela Minatti


Leia no livro:
Mas que bagunça é essa ?! ............... p.356



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