Você já leu muito sobre os benefícios cientificamente comprovados da presença dos avós na rotina dos netos. Principalmente se você está no grupo de mães e pais que eventualmente esticam a jornada no trabalho ou costumam receber aquele abacaxi das 5, que jamais será resolvido a tempo de ir buscar as crianças na escola. Se tem avós ativos disponíveis, é a eles que se recorre quando surgem esses imprevistos regulares. Nessas horas, junto com a sensação incômoda de dar trabalho extra pro vovô, vem aquela dose de argumentos tranquilizantes (tipo “é bom pra ele”) sustentados por artigos científicos popularizados pela mídia e por mães blogueiras.
Não faz mal que a gente só se lembre dos bons motivos para apelar a eles, especialmente na hora do sufoco. Nas horas de normalidade, porém, é importante pensar em como evitar que vô&vó virem apenas babás ou somente motoristas da molecada.
É claro que avós podem se transformar em qualquer coisa que a necessidade de seus descendentes exigir. É enorme o número de idosos que sustentam seus filhos (adultos e adolescentes) e a prole de seus filhos. Além do papel de chefes de família, há também o de cuidadores oficiais dos netos, porque este é o único arranjo que permite aos pais saírem para trabalhar. Há ainda o papel de avós-pais, que assumiram as crianças de genitores que sumiram ou são incapazes... Cada papel tem sua dose de peculiaridades e de desafios na relação com filhos e netos.
No modelo nossa-casa x casa-da-vovó, a distinção facilita a preservação do espaço para eles serem simplesmente aqueles velhos compreensivos e carinhosos, contadores de histórias e ouvintes interessados em cada aventura dos pequenos heróis. Mas a vida tá complexa. As exigências do trabalho dos pais, as dificuldades para garantir a rotina de cuidados às crianças e, convenhamos, a comodidade de contar com o auxílio dos ancestrais babões criam as condições para embaralhar papeis.
É nessa hora que você se lembra daqueles poréns. Cuidar dos netos estimula a mente e o corpo dos idosos, mas eles não estão necessariamente dispostos ou preparados o suficiente para assumir uma função determinada ou para encarar uma jornada de trabalho. Cuidar dos netos é uma forma de valorização dos avós, mas integrá-los como cuidadores na rotina pesada com as crianças pode implicar que deixem de atuar como avós em alguns sentidos importantes.
Uma coisa é dar a papinha pro nenê naquele dia de visita, com saudade do netinho fofo, fazendo graça e deixando pacientemente ele se lambuzar até às orelhas; outra demanda entra em jogo quando ele tem de bancar o almoço todo dia, suportando mudanças de humor ou aquela carinha de nojo do papá. Uma coisa é sair com a netinha pra dar uma volta; arrumá-la e levá-la para a escola três vezes por semana já exige dos avós atitudes bem diferentes. As questões e os sentimentos mobilizados nessas relações não são iguais.
Naturalmente a relação tripartite avós-filhos-netos, especialmente nas famílias ocidentais contemporâneas, envolve questões e sentimentos que merecem muita atenção. Pode haver choque de costumes, divergências sobre o modo de tratar as crianças, tentativas de reparar erros do passado, expectativa de serem amados, competição, ciúme... Essa relação exige sempre o cuidado dos adultos, como você já sabe. Os pais precisam se posicionar claramente, dizendo aos avós quais limites devem ser mantidos, o que não pode ser concedido às crianças etc. Os avós precisam respeitar a autoridade dos pais, fortalecer a imagem deles perante os filhos etc. Quando o papel dos avós se embaralha, esse cenário pode ficar ainda mais complexo.
Para quem não tem escolha, talvez a entrada dos avós na rotina dos netos valha o custo de lidar com essas relações mais complexas e de perder algumas boas funções de ancestrais. Para quem pode preservar um espaço mais claro de vó&vô, vale pensar em como ajudá-los a manter a lucidez e a vivacidade. Além de valorizá-los como avós, é importante dar uma força para que se sintam valorizados também como cidadãos, espantando aquela aura depressiva que toma muitos aposentados.
Não custa sugerir atividades sociais, e mesmo algumas atividades produtivas informais envolvendo contato com outras pessoas. Às vezes nem é preciso sair de casa. Há idosos que ensinam línguas via internet, e passam horas em conversa com jovens. Essas atividades diminuem o tempo disponível deles para socorrer você nas horas de sufoco com as crianças, mas lembre-se de que a molecada ganha muito tendo avós felizes, pessoas ativas que terão muito mais a oferecer aos netos.
Angela Minatti e David Moisés
Angela Minatti e David Moisés
Leia também no livro:
O relógio do vovô ........ p. 163
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