domingo, 17 de abril de 2016

A hora da coerência



Todo mundo parece ter uma opinião sólida e sonora nesses tempos em que a crise política apresenta momentos de decisão. Seja pela indignação (de qualquer lado), seja pelo senso de responsabilidade com os destinos do país, seja pela mera vontade de estar naquela selfie da manifestação histórica, tem muita gente (de todos os lados) discursando sobre respeito à lei, ética e honestidade, valores democráticos e republicanos. E a molecada tá de olho em tudo isso, claro. Daí que os pais precisam tomar alguns cuidados adicionais.

Na frente das crianças, o adulto que veste a camiseta (de qualquer cor), estufa o peito e fala em respeito à Constituição, defesa da democracia e da República deve redobrar a atenção quanto às suas próprias atitudes corriqueiras. É indispensável manter a coerência. É proibido cometer pequenos deslizes, como apelar para espertezas em filas ou deixar aquele papelzinho caído fora do lixo após o arremesso ruim, muito menos acelerar no sinal amarelo ou dar escapadas pelo acostamento.


A coerência é crucial também na relação direta com os pequenos, especialmente na hora dos limites. Essa é a hora em que os adultos penam para suportar as reações iradas, os choros e birras. É a hora em que são tentados a adotar atalhos que suavizam a situação - e anulam o limite -, do tipo “desliga o celular porque senão você fica dodói”, “para de chorar porque vai acordar seu irmãozinho” etc. Limites costumam ser frequentemente substituídos por barganhas e ameaças: “se não vier agora, vou te deixar aí”, “vou te trazer aquele game novo, mas agora você vai pra cama direitinho, ok?”...

A incoerência dos pais faz muito mal aos filhos. Não dá pra pontificar contra a corrupção durante o café da manhã e jogar conversa no guarda de trânsito na porta da escola, nem comprar a obediência da molecada com promessas de programas legais. Quem acusa os adversários políticos de desrespeitar as regras do jogo democrático não pode fingir que tem direito ao caixa de atendimento preferencial, não pode descumprir um combinado com a prole nem permitir que os pequenos deixem de seguir sua rotina de horários em casa. O pai não pode deixar que façam o que a mãe proibiu, e vice-versa.


Os discursos dessa disputa política versam sobre o respeito às leis e aos valores republicanos e democráticos - desconsiderando-se aqueles patológicos residuais que pregam intervenção militar. Quando os adultos quebram as leis nas atitudes cotidianas, contaminam essas ideias com a marca da suspeição. Afinal, concluem as crianças, as leis e valores foram defendidos por alguém que não os respeita, há algo errado: ou esse alguém é falso (corrupto), ou leis e valores não são mesmo pra serem respeitados. O mais comum é que o resultado seja uma soma de tudo isso, com a perda de confiança dos filhos em relação aos pais.

No caso dos limites, a troca por barganhas, ameaças e recursos de culpabilização segue a mesma lógica do desrespeito à lei. Limite é uma ordem, carregada de afeto, dada pelo adulto que cuida da criança: “é hora de tomar banho, vamos!”, “ok, chega de jogar joguinho, me dê o tablet aqui”, “Papai não quer que coma doce agora”, “vamos pra casa agora”... Isso provoca frustração, que desata sentimentos como o ódio, e gera reações que vão da cara feia ao esperneio escandaloso. O adulto que dá essa ordem está cumprindo uma lei, a lei do cuidado pelo bem estar e pela saúde da criança. Portanto, quando a ordem é substituída por uma negociação, ameaça ou qualquer tipo de argumentação - geralmente para evitar ou abrandar as reações de raiva -, deixa de haver respeito à lei e passa a haver jogo de interesses, medo ou culpa.


Em todos os casos, a perda de confiança em relação aos pais é dolorosa para os pequenos. Os adultos são sua referência, são seu porto seguro, figuras fortes que os assistem enquanto eles lidam com seus sentimentos, ainda muito primitivos e assustadores. Qualquer redução de confiança nessas figuras significa mais insegurança. Eles se sentem abandonados, e isso provoca danos: para se adaptar ao abandono, a criança tende a anestesiar os sentimentos, já que não pode enfrentá-los e processá-los sem o apoio dos grandes. Assim, segue a vida sem amadurecer como deveria, com lacunas na estrutura emocional.

O país vive dias tensos e todo mundo anda ocupado com suas discussões, mas vale o esforço de atentar para a molecada. Isso pode até ajudar os adultos a buscar alguma lucidez em meio a debates apimentados com arrogância e intolerância. Os pequenos, com sua observação apurada, com suas perguntas simples e diretas, lembram que só o olhar crítico do outro (incluindo adversários políticos) nos permite ver muitas de nossas contradições e defeitos que queremos superar.


David Moisés e Angela Minatti



Leia também no livro:
Como ajudar os pequenos a crescer ........ p.43-60



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