quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Contos de fadas não podem ser moderninhos




Existem histórias para crianças, e existem os contos de fadas.

Você encontra por aí, fácil, uma literatura infantil razoavelmente grande, com ótimas opções de autores e títulos, mas não dá pra pensar que a clássica Chapeuzinho Vermelho possa ser simplesmente atualizada numa garota descolada e destemida, ou que o lobo-mau possa virar vítima de porquinhos pestinhas. Não funciona assim - ou melhor: assim, não funciona.

Contos de fadas não são mero entretenimento, nem seu valor se resume à qualidade da prosa ou das sacadas de seus redatores. São histórias de encantamento e magia elaboradas por sucessivas gerações, ao longo de séculos, adquirindo formas e sentidos condizentes com as culturas a que servem. São narrativas com as quais as comunidades podem falar a suas crianças sobre os sentimentos brutos que elas sentem, e que precisam ser lapidados.




O ódio, a inveja, a paixão possessiva, a vontade egoísta, despótica e imediatista estão entre os sentimentos crus que movem os personagens dos contos de fadas, mesmo aqueles que parecem mais fofos ou engraçadinhos. É isso o que conta para as crianças, que estão justamente no maior esforço para processar seus sentimentos primitivos e se humanizar.

Tem alguma coisa de moralidade nessas narrativas, mas isso nem é o que mais importa, e sim os sentimentos e os conflitos aos quais eles levam. Também tem modelos de (mau) comportamento nesses contos, mas não se trata só de ensinar que uma casa feita de doces, no meio da floresta, é certamente uma armadilha, nem que não se deve sair sozinho numa mata desconhecida.


O que os pequenos querem compreender é por que, raios, João e Maria são seduzidos tão facilmente por aquela construção doce e sinistra naquele bosque tenebroso, ou porque Chapeuzinho Vermelho não percebe que é perigoso sair sozinha onde tem lobos… E por que os adultos que deveriam cuidar daquelas crianças ali são tão ingênuos, maus, perversos…

A revolta com a ruindade das bruxas, o medo dos bichos, a tristeza com o abandono e o sofrimento, o nojo dos sapos etc ativam a usina que amadurece os sentimentos. Estando no mundo fantástico do era-uma-vez, a uma distância segura, esses infernos bem conhecidos podem ser olhados atentamente pelos pequenos, que pedem bis - para poder processar e reprocessar o que sentem.

Se o lobo é bobo, se a bruxa não é cruel, se nada trágico acontece aos personagens da história, perde-se o efeito de ebulição dos sentimentos. Uma Branca de Neve feminista ou mandona pode ser uma ótima personagem, mas para adolescentes que já conhecem essa praia, que puderam lapidar seus sentimentos na infância e sabem da narrativa original para identificar o que é engraçado na paródia. Para as crianças, Branca de Neve precisa ser aquela doce vítima de uma trama sórdida.




Versões adocicadas dos contos de fada também não oferecem aos pequenos o mesmo componente de elaboração e amadurecimento. Já houve adaptação suficiente ao longo dos séculos, quando as historinhas para adultos foram perdendo as referências explícitas a estupros e coisas desse tipo. O que sobrou nas versões dos séculos 18 e 19 é suficiente para não chocar as crianças e, ao mesmo tempo mobilizar as emoções.

Versões como a dos irmãos Grimm têm a vantagem de manter a tragicidade das narrativas e, ao mesmo tempo, apresentar desfechos redentores para os pequenos heróis. Chapeuzinho erra, mas tem uma chance de aprender com o erro, ao ser retirada vivinha da barriga do lobo. Para os adultos maus, ao contrário, o destino é o martírio eterno.


No fim da história, algum adulto cuidador aparece e devolve o senso de humanidade à situação, ou o próprio amadurecimento das personagens conduz a uma solução do problema. O felizes-para-sempre não significa o prazer e a alegria ad infinitum, mas um estado de normalidade que não sucumbirá mais à selvageria.

Na voz afetuosa dos pais que contam, esses contos adquirem ainda mais poder. A hora da historinha transforma-se numa espécie de cerimônia de transmissão de símbolos. Em nada se compara, portanto, à leitura de uma narrativa pós-moderna, principalmente aquelas cheias de sacadas críticas - muito boas, mas que estimulam apenas o intelecto.



Angela Minatti e David Moisés


Leia também no livro:
O encanto real dos contos de fadas .................... p.107



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