domingo, 9 de outubro de 2016

Como é bom não ganhar presente

Querer e não ter, pedir e não ganhar, tentar e não conseguir, procurar e não encontrar, esperar e não alcançar. A frustração que se sente nessas situações é desconfortável, e por vezes dolorosa. Mas, de tão comum na vida - você não ganha tudo o que pede, certo? -, ela se torna uma parte da experiência diária, um daqueles incômodos que fazem a gente mudar de posição, se conformar e seguir em frente, buscar uma outra saída, inventar outro jeito, formular uma nova ideia.

Para quem ainda é pequeno, com pouca experiência em frustração, pedir e não ganhar é uma situação dramática e revoltante. Quanto menor a criança, quanto mais próxima daquela onipotência original da infância, mais fortes são os sentimentos causados pelo mundo que teima em desobedecê-la. Por isso a frustração das vontades da molecada resulta num incômodo bem maior, de proporções coletivas.

Só com muita prática é que os pequenos conseguem criar seu próprio jeito de lidar com esses ossos do ofício de viver. Precisam crescer com quilometragem suficiente pra aguentar a decepção com a lembrancinha no lugar do presente, pra suportar o cancelamento da viagem de férias ou a redução no orçamento das baladas, pra sofrer normalmente - sem agredir - quando a mina não tá a fim de namorar, pra lamber as feridas e continuar a vida quando o nome não sai na lista de aprovados ou quando a promoção de cargo não vem.

Dá para notar, então, como a frustração é importante no dia-a-dia das crianças. Ter prática e experiência nisso significa viver situações reais que provocam sentimentos intensos, como a raiva, a inveja e a tristeza, que podem então ser processados, refinados, lapidados e integrados a uma estrutura emocional mais humana e menos bruta. A frustração é o disparador dos sentimentos primitivos com que as ferinhas nascem. Ao dispará-los, permite aos pequenos conhecer e elaborar o que sentem, humanizar aquilo que originalmente é meio selvagem.

É assim - e somente assim - que um jovem ou um adulto podem um dia tirar de letra os dissabores variados que abundam na sua existência de mortais. Não porque calejaram e se amansaram com as sucessivas frustrações, mas porque os sentimentos trabalhados lhes são menos corrosivos, não cegam nem impedem o pensamento; ao contrário, esses sentimentos ampliam a capacidade de discernimento e a compreensão. Crescer sem frustração seria como crescer sem exercitar o corpo, sem tonificar os músculos.

Ninguém precisa programar frustrações para exercitar a prole, claro. A vida real se encarrega disso, com as limitações naturais, sociais, econômicas, políticas, culturais… O problema está do outro lado: tentar evitar, abrandar ou anestesiar a frustração da molecada.

Mesmo as mães e os pais mais conscientes são tentados a poupar seus filhotes dessa experiência, ainda que reconhecendo sua importância. A ira primitiva, a inveja e os outros sentimentos brutos disparados nessas horas reverberam com muita força nos genitores, há traços de identificação com o sentimento das crias, há um considerável trabalho emocional para os adultos também.

Tentativas de escamotear frustrações acontecem também porque há adultos que ficam com dó, não suportam ver “sofrimento”, querem formar filhos vencedores, querem que a prole tenha aquilo que nunca puderam ter, ou simplesmente não têm saco pra ouvir criança chorando. Nesses casos, evitam situações que envolvam risco de gerar frustração e (como isso só é possível numa parcela diminuta da existência) tentam ludibriar os pequenos quando a coisa acontece. A estratégia envolve até negar que o fato frustrante ocorreu, ou dar-lhe outro significado, ou ainda minimizar a frustração desvalorizando o fato como algo sem importância.

Lidar com a frustração da molecada exige muita energia, disposição, paciência e determinação. Porque essa é a hora do limite, hora de permitir e acolher a reclamação, o choro, o esperneio, a birra, a manha etc, sem oferecer nada para compensar ou consolar, sem tentar mudar de assunto, sem explicar que acontece por causa disso ou daquilo, sem criticar, sem negociar. É hora de dar colo e carinho apenas. As crianças precisam dessa experiência vital, e vão insistir para tê-la. Ou seja, tentar evitar a frustração acaba por intensificar as situações e o disparo dos sentimentos primitivos. Melhor encarar o trabalho já, e não deixar que ele se multiplique depois.

David Moisés e Angela Minatti

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terça-feira, 12 de julho de 2016

Remédio para indisciplina e desinteresse na escola





Está ficando “normal” usar remédios para resolver problemas de comportamento de crianças na escola. Há alguns anos essa ideia perigosa começou a circular entre pais e educadores como solução moderna e rápida para casos de hiperatividade. Logo a rebeldia e a indisciplina, a falta de interesse nas aulas e até algumas dificuldades de aprendizagem passaram a ser vistas como sinais de hiperatividade. Alguns estudos nas áreas de psicologia e sociologia demonstraram essa medicalização na rotina escolar, e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) chegou a alertar para o uso “muito difundido” do metilfenidato (Ritalina e Concerta), inclusive como “droga da obediência” e como “instrumento de melhoria de desempenho”.

O relatório da Anvisa, de 2012, é citado num estudo mais recente, de 2016, que analisou escolas públicas e particulares de Florianópolis e relevou como essa solução química está incorporada ao discurso pedagógico. A pesquisadora Karina Giusti, da Universidade Federal de Santa Catarina, entrevistou educadores numa amostragem de oito escolas e detectou uma visão dos “comportamentos infantis em termos biológicos e neuroquímicos”, o que contribui para uma “patologização” da vida das crianças. Ao mesmo tempo, os educadores se sentem “perdidos” diante do aumento do número de crianças submetidas ao uso de psicofármacos, relata a pesquisadora.

Essa tendência de associar o funcionamento psíquico a bases orgânicas é antiga, e já em 2007 um estudo da USP alertava para a chegada dessa mania às escolas. Nele, Renata Guarido chama atenção para a “psiquiatrização do discurso escolar”. Há um grande risco quando se coloca tanta importância em técnicas, seja para dominar conflitos ou para atingir competências, porque a educação dos pequenos não é apenas instrução acadêmica. Junto com o aprendizado intelectual, eles estão se esforçando para se constituir como sujeitos no mundo. Os conflitos são parte indispensável nesse processo, e por isso exigem tanto trabalho dos educadores.


Esse assunto já esteve na mídia e provocou alertas importantes, mas parece que a tendência não se reverteu. Pior, a normalização da ideia de medicalizar a indisciplina e o desempenho ruim na escola cria um efeito manada, tipo todo-mundo-usa, uma sensação de que usar remédio não faz tão mal assim… Tudo isso se agrava com a própria realidade do cuidado às crianças, repleta de trabalho duro e desafios naturais, e com os novos desafios surgidos da falta de cuidados adequados (a molecada cria mais problemas na escola quando não está recebendo esses cuidados). No fim, somam-se ainda mais justificativas para buscar soluções modernas e rápidas para toda essa “hiperatividade”.

Tudo se agrava também pelo próprio uso dos remédios. Estudiosos do tema já suspeitavam que as crianças poderiam se tornar menos sensíveis à droga, e os educadores parecem confirmar esses temores. No trabalho de Giusi eles relatam que a medicação inicialmente “ameniza os efeitos dos transtornos, mas, com o tempo, os alunos voltam a apresentar os mesmos comportamentos que levaram ao diagnóstico”. Daí vem a aplicação de doses maiores ou de substâncias mais potentes.

Estudos sobre o impacto desses medicamentos nas crianças certamente virão à luz em breve, mas por ora é preciso contar com pesquisas que mostram, por exemplo, alterações em marcadores neurais de plasticidade no cérebro de ratos jovens, indicando que o metilfenidato pode alterar propriedades básicas do córtex pré-frontal. De qualquer forma, é bom lembrar que não estamos falando de efeitos colaterais em pacientes que necessitam claramente do uso da substância, e sim de crianças submetidas à droga como medida de controle comportamental, com base em diagnósticos questionáveis ou flagrantemente equivocados.


Ninguém duvida do trabalho árduo que têm os educadores na rotina da sala de aula, nem da crescente dificuldade que eles enfrentam ao receber na escola gerações de crianças “mais difíceis”, enquanto sofrem pressões por desempenho em sua missão de formar homens e mulheres de sucesso. É sintomático, aliás, que a medicação seja um recurso mais naturalmente aceito entre aqueles que trabalham com turmas maiores. Mas é preciso lembrar que não existem soluções modernas e rápidas para lidar com a rebeldia ou para fazer os pequenos gostarem de estudar. A experiência do dia a dia tem demonstrado que a promessa química não resolve, e pode até mesmo piorar as coisas.

Nos conflitos, nos sinais de desinteresse e na bagunça aparecem os sentimentos brutos, a matéria-prima com a qual se constitui um sujeito, uma pessoa única com suas capacidades em desenvolvimento ao longo da vida. Os problemas, portanto, poderiam ser vistos como objeto do trabalho dos professores - assim como dos pais -, e não como mero desvio no cronograma escolar.

Enquanto não se inventam uma droga ou uma técnica que façam a mágica de transformar os impulsos primitivos das crianças em sentimentos humanos razoavelmente lapidados, ou que substituam o trabalho dos pais e cuidadores na garantia de um ambiente de desenvolvimento com limites e afeto, o caminho continuará sendo o de sempre: cuidar dos pequenos a cada dia, reconhecendo que as dificuldades e chatices da rotina são, na verdade, os momentos cruciais para eles começarem a sentir algum gosto pela escola, pelo convívio com os colegas, pelo mundo.


David Moisés e Angela Minatti


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Mas que bagunça é essa ?! ............... p.356



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segunda-feira, 23 de maio de 2016

Classificação indicativa é pra valer



Quem já teve de mudar de canal às pressas, diante daquela cena forte que surge de repente no filme de domingo à tarde, sabe como é importante a classificação indicativa de programas por faixas etárias. Se as emissoras já abusam, mesmo sob os olhos da lei, pior seria se não houvesse regulação e informações sobre cenas inadequadas para menores de 10, 12 ou 14 anos. Mas não basta ser rápido no controle remoto.

Respeitar a classificação etária ao deixar a molecada diante da TV é uma decisão séria, com muitas implicações sobre a percepção dos pequenos sobre a vida.

Se o filme que tá começando é classificado para 10 anos, o menino de 9 anos não deveria assisti-lo. Claro que vai rolar muita argumentação enquanto as letrinhas iniciais aparecem na tela. Para o garotão, não faz diferença ter 9 anos e 7 meses e ter 10 anos completos; para os adultos na sala, que também querem relaxar no sofá, essa classificação é meio imprecisa mesmo… São argumentos válidos, mas a questão fundamental é respeitar ou não a classificação.

É provável que a discussão não se conclua e acabe todo mundo curtindo o filme até o fim, deixando pra trás uma chance valiosa de mostrar na prática que existem pessoas cuidando das crianças.

Quando os pequenos notam, na advertência inicial, que alguém teve o trabalho de assistir àquele filme antes, de analisar seu conteúdo e fazer uma recomendação para que menores de 10 anos não o assistam, sentem-se objeto de um cuidado. Por mais que achem nada-a-ver essa recomendação e fiquem ainda mais a fim de burlá-la, sentem-se protegidos. Quando os pais ou outros cuidadores respeitam essa restrição, os revoltados menores de 10 anos sentem que estão sendo ainda mais cuidados por esses adultos.

O contrário disso tende a ser uma sensação de abandono e vulnerabilidade, uma percepção de que o cuidado oferecido por aqueles que classificaram o filme não tem valor, de que a lei não é coisa pra ser assim tããão respeitada...

Dentre tantas outras implicações, basta lembrar dois pontos básicos. Primeiro, as crianças passam boa parte da infância procurando modelos a copiar e a seguir, e é com esses olhos que elas assistem à TV. Dá pra imaginar o que isso significa quando têm diante de si cenas e tramas complexas e impactantes.

Segundo, crianças são seres ainda incapazes de lidar com todos os tipos de sentimento. Conteúdos produzidos para adolescentes mobilizam sentimentos com os quais os pequenos não sabem lidar, que causam sobrecarga emocional e sofrimento.



Isso vale para todo tipo de conteúdo, inclusive online e impresso, embora nesses campos ainda não haja no Brasil uma classificação detalhada como para a TV. Mesmo histórias em quadrinhos precisam ser selecionadas com critério, especialmente depois que aquela turminha dos gibis cresceu e passou a agitar tramas adolescentes no mangá da Turma da Mônica Jovem.

Acostumados aos personagens coloridos na versão infantil, filhos e pais são levados facilmente a acreditar que a versão hormonizada vai render a mesma diversão. Mas histórias com tom sombrio, por vezes sinistro, pesam demais sobre os pequenos leitores. A editora adverte na capa dos exemplares (em letras miúdas) que o conteúdo é “aconselhável para maiores de 10 anos”, e é bom que os adultos prestem atenção a isso.

Pra se mexer

Quem compreende a importância da classificação indicativa de faixa etária para programas, espetáculos e outros conteúdos tem de saber que a legislação sobre o tema precisa avançar. No momento, entretanto, há um risco de retrocesso.

No Supremo Tribunal Federal (STF), as emissoras de TV estão tentando retirar da lei o artigo que as impede de exibir programas impróprios para crianças em determinados horários. Alegam que essa proibição é um cerceamento à liberdade de expressão.

Os ministros do STF têm sido muito corretos na garantia da liberdade de expressão no Brasil, sintonizados com as mais avançadas correntes do direito internacional. Isso é ótimo, mas neste caso eles parecem estar se confundindo. O relator Dias Tóffoli deu parecer favorável às emissoras, e foi acompanhado por 3 outros ministros: Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ayres Britto (agora aposentado).

Só que não se trata de impedir veiculação de conteúdo. A lei apenas regula a exposição de forma a proteger crianças brasileiras que passam de 4 a 6 horas diárias diante de um aparelho de TV - em geral, sem a companhia de um adulto. O ministro Edson Fachin compreendeu isso e, em novembro de 2015 deu o primeiro voto contra o pleito das emissoras. Em seguida, Teori Zavaski pediu vistas, e agora a matéria está para voltar à pauta do Supremo.

Há uma mobilização de organizações sociais, chamada Programa adulto em horário adulto, que tem o objetivo de sensibilizar os ministros do STF e evitar essa mudança na legislação. Ao contrário de abrandar os mecanismos de pressão sobre as emissoras, é preciso aperfeiçoá-los, permitindo denúncias e punições também nos casos em que a classificação etária é inadequada, por exemplo. É uma causa pela qual vale se mexer.

David Moisés e Angela Minatti

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Televisão não é babá.................p.82


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domingo, 17 de abril de 2016

A hora da coerência



Todo mundo parece ter uma opinião sólida e sonora nesses tempos em que a crise política apresenta momentos de decisão. Seja pela indignação (de qualquer lado), seja pelo senso de responsabilidade com os destinos do país, seja pela mera vontade de estar naquela selfie da manifestação histórica, tem muita gente (de todos os lados) discursando sobre respeito à lei, ética e honestidade, valores democráticos e republicanos. E a molecada tá de olho em tudo isso, claro. Daí que os pais precisam tomar alguns cuidados adicionais.

Na frente das crianças, o adulto que veste a camiseta (de qualquer cor), estufa o peito e fala em respeito à Constituição, defesa da democracia e da República deve redobrar a atenção quanto às suas próprias atitudes corriqueiras. É indispensável manter a coerência. É proibido cometer pequenos deslizes, como apelar para espertezas em filas ou deixar aquele papelzinho caído fora do lixo após o arremesso ruim, muito menos acelerar no sinal amarelo ou dar escapadas pelo acostamento.


A coerência é crucial também na relação direta com os pequenos, especialmente na hora dos limites. Essa é a hora em que os adultos penam para suportar as reações iradas, os choros e birras. É a hora em que são tentados a adotar atalhos que suavizam a situação - e anulam o limite -, do tipo “desliga o celular porque senão você fica dodói”, “para de chorar porque vai acordar seu irmãozinho” etc. Limites costumam ser frequentemente substituídos por barganhas e ameaças: “se não vier agora, vou te deixar aí”, “vou te trazer aquele game novo, mas agora você vai pra cama direitinho, ok?”...

A incoerência dos pais faz muito mal aos filhos. Não dá pra pontificar contra a corrupção durante o café da manhã e jogar conversa no guarda de trânsito na porta da escola, nem comprar a obediência da molecada com promessas de programas legais. Quem acusa os adversários políticos de desrespeitar as regras do jogo democrático não pode fingir que tem direito ao caixa de atendimento preferencial, não pode descumprir um combinado com a prole nem permitir que os pequenos deixem de seguir sua rotina de horários em casa. O pai não pode deixar que façam o que a mãe proibiu, e vice-versa.


Os discursos dessa disputa política versam sobre o respeito às leis e aos valores republicanos e democráticos - desconsiderando-se aqueles patológicos residuais que pregam intervenção militar. Quando os adultos quebram as leis nas atitudes cotidianas, contaminam essas ideias com a marca da suspeição. Afinal, concluem as crianças, as leis e valores foram defendidos por alguém que não os respeita, há algo errado: ou esse alguém é falso (corrupto), ou leis e valores não são mesmo pra serem respeitados. O mais comum é que o resultado seja uma soma de tudo isso, com a perda de confiança dos filhos em relação aos pais.

No caso dos limites, a troca por barganhas, ameaças e recursos de culpabilização segue a mesma lógica do desrespeito à lei. Limite é uma ordem, carregada de afeto, dada pelo adulto que cuida da criança: “é hora de tomar banho, vamos!”, “ok, chega de jogar joguinho, me dê o tablet aqui”, “Papai não quer que coma doce agora”, “vamos pra casa agora”... Isso provoca frustração, que desata sentimentos como o ódio, e gera reações que vão da cara feia ao esperneio escandaloso. O adulto que dá essa ordem está cumprindo uma lei, a lei do cuidado pelo bem estar e pela saúde da criança. Portanto, quando a ordem é substituída por uma negociação, ameaça ou qualquer tipo de argumentação - geralmente para evitar ou abrandar as reações de raiva -, deixa de haver respeito à lei e passa a haver jogo de interesses, medo ou culpa.


Em todos os casos, a perda de confiança em relação aos pais é dolorosa para os pequenos. Os adultos são sua referência, são seu porto seguro, figuras fortes que os assistem enquanto eles lidam com seus sentimentos, ainda muito primitivos e assustadores. Qualquer redução de confiança nessas figuras significa mais insegurança. Eles se sentem abandonados, e isso provoca danos: para se adaptar ao abandono, a criança tende a anestesiar os sentimentos, já que não pode enfrentá-los e processá-los sem o apoio dos grandes. Assim, segue a vida sem amadurecer como deveria, com lacunas na estrutura emocional.

O país vive dias tensos e todo mundo anda ocupado com suas discussões, mas vale o esforço de atentar para a molecada. Isso pode até ajudar os adultos a buscar alguma lucidez em meio a debates apimentados com arrogância e intolerância. Os pequenos, com sua observação apurada, com suas perguntas simples e diretas, lembram que só o olhar crítico do outro (incluindo adversários políticos) nos permite ver muitas de nossas contradições e defeitos que queremos superar.


David Moisés e Angela Minatti



Leia também no livro:
Como ajudar os pequenos a crescer ........ p.43-60



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domingo, 28 de fevereiro de 2016

É bom deixar os avós serem avós


Você já leu muito sobre os benefícios cientificamente comprovados da presença dos avós na rotina dos netos. Principalmente se você está no grupo de mães e pais que eventualmente esticam a jornada no trabalho ou costumam receber aquele abacaxi das 5, que jamais será resolvido a tempo de ir buscar as crianças na escola. Se tem avós ativos disponíveis, é a eles que se recorre quando surgem esses imprevistos regulares. Nessas horas, junto com a sensação incômoda de dar trabalho extra pro vovô, vem aquela dose de argumentos tranquilizantes (tipo “é bom pra ele”) sustentados por artigos científicos popularizados pela mídia e por mães blogueiras.

Não faz mal que a gente só se lembre dos bons motivos para apelar a eles, especialmente na hora do sufoco. Nas horas de normalidade, porém, é importante pensar em como evitar que vô&vó virem apenas babás ou somente motoristas da molecada.

É claro que avós podem se transformar em qualquer coisa que a necessidade de seus descendentes exigir. É enorme o número de idosos que sustentam seus filhos (adultos e adolescentes) e a prole de seus filhos. Além do papel de chefes de família, há também o de cuidadores oficiais dos netos, porque este é o único arranjo que permite aos pais saírem para trabalhar. Há ainda o papel de avós-pais, que assumiram as crianças de genitores que sumiram ou são incapazes...  Cada papel tem  sua dose de peculiaridades e de desafios na relação com filhos e netos.

No modelo nossa-casa x casa-da-vovó, a distinção facilita a preservação do espaço para eles serem simplesmente aqueles velhos compreensivos e carinhosos, contadores de histórias e ouvintes interessados em cada aventura dos pequenos heróis. Mas a vida tá complexa. As exigências do trabalho dos pais, as dificuldades para garantir a rotina de cuidados às crianças e, convenhamos, a comodidade de contar com o auxílio dos ancestrais babões criam as condições para embaralhar papeis.

É nessa hora que você se lembra daqueles poréns. Cuidar dos netos estimula a mente e o corpo dos idosos, mas eles não estão necessariamente dispostos ou preparados o suficiente para assumir uma função determinada ou para encarar uma jornada de trabalho. Cuidar dos netos é uma forma de valorização dos avós, mas integrá-los como cuidadores na rotina pesada com as crianças pode implicar que deixem de atuar como avós em alguns sentidos importantes.

Uma coisa é dar a papinha pro nenê naquele dia de visita, com saudade do netinho fofo, fazendo graça e deixando pacientemente ele se lambuzar até às orelhas; outra demanda entra em jogo quando ele tem de bancar o almoço todo dia, suportando mudanças de humor ou aquela carinha de nojo do papá. Uma coisa é sair com a netinha pra dar uma volta; arrumá-la e levá-la para a escola três vezes por semana já exige dos avós atitudes bem diferentes. As questões e os sentimentos mobilizados nessas relações não são iguais.

Naturalmente a relação tripartite avós-filhos-netos, especialmente nas famílias ocidentais contemporâneas, envolve questões e sentimentos que merecem muita atenção. Pode haver choque de costumes, divergências sobre o modo de tratar as crianças, tentativas de reparar erros do passado, expectativa de serem amados, competição, ciúme... Essa relação exige sempre o cuidado dos adultos, como você já sabe. Os pais precisam se posicionar claramente, dizendo aos avós quais limites devem ser mantidos, o que não pode ser concedido às crianças etc. Os avós precisam respeitar a autoridade dos pais, fortalecer a imagem deles perante os filhos etc. Quando o papel dos avós se embaralha, esse cenário pode ficar ainda mais complexo.

Para quem não tem escolha, talvez a entrada dos avós na rotina dos netos valha o custo de lidar com essas relações mais complexas e de perder algumas boas funções de ancestrais. Para quem pode preservar um espaço mais claro de vó&vô, vale pensar em como ajudá-los a manter a lucidez e a vivacidade. Além de valorizá-los como avós, é importante dar uma força para que se sintam valorizados também como cidadãos, espantando aquela aura depressiva que toma muitos aposentados.

Não custa sugerir atividades sociais, e mesmo algumas atividades produtivas informais envolvendo contato com outras pessoas. Às vezes nem é preciso sair de casa. Há idosos que ensinam línguas via internet, e passam horas em conversa com jovens. Essas atividades diminuem o tempo disponível deles para socorrer você nas horas de sufoco com as crianças, mas lembre-se de que a molecada ganha muito tendo avós felizes, pessoas ativas que terão muito mais a oferecer aos netos.

Angela Minatti e David Moisés

Leia também no livro:
O relógio do vovô ........ p. 163


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sábado, 30 de janeiro de 2016

A matemática da pré-escola



Um estudo feito com 1.300 crianças australianas, divulgado nesta semana, mostra que o desempenho em matemática é pior entre aquelas que frequentaram a pré-escola do que aquelas que estiveram sob cuidados não profissionais, ou seja, dos pais e de outros cuidadores sem formação nem propósito pedagógicos.

O desempenho foi comparado também com o das crianças que não foram à pré-escola, mas que passavam seus dias em estabelecimentos de day-care. Além de superarem todas em matemática, os pequenos que ficaram em casa demonstraram-se tão competentes quanto todos os demais em habilidades relacionadas à linguagem.

A pesquisadora Claudia Cohrssen, da Universidade de Melbourne, disse ao jornal The Sidney Morning Herald que o estudo mostra uma poderosa influência do ambiente de aprendizagem em casa, e que “as crianças em situações informais parecem se beneficiar da relação individualizada com seu cuidador” ao longo do tempo.

Mais matemática?


Para as autoridades e especialistas, os resultados podem estar indicando uma falha na formação e na capacitação dos profissionais das pré-escolas. Os autores do estudo reconhecem que “muitos educadores da primeira infância demonstram ansiedade quanto a seus conhecimentos de matemática” e sentimentos negativos em relação à disciplina.

Desconte-se também o fato de que a exigência de qualidade nas pré-escolas australianas foi elevada nos últimos anos, depois que as crianças pesquisadas já haviam saído delas. É bem provável, portanto, que as crianças atualmente nas pré-escolas da Austrália - e de outros países - estejam tendo atividades de matemática mais intensas e eficazes, o que deve se refletir num melhor desempenho no futuro.

Imaginando como será o resultado do próximo estudo, daqui a alguns anos, pode-se prever o sorriso das autoridades diante de uma vitória dos egressos da pré-escola sobre as crianças que ficaram em casa. Uma vitória que pode ser apenas uma grande bobagem, senão um fardo para as crianças na etapa final da primeira infância.

A julgar pelos comentários feitos ao jornal, o estudo atual vai estimular um aperto no ensino da matemática, em vez de uma reflexão sobre a utilidade, a conveniência e a adequação de um modelo que substitui freneticamente as experiências de construção de competências de convívio e relacionamento por aquele batidão de aprendizado cognitivo.

Mais amor pela matemática


Talvez as autoridades ignorem a constatação mais valiosa do estudo: a comprovação, mais uma vez, da força da estrutura emocional como base para um bom desenvolvimento cognitivo ao longo da vida.

Mesmo sem supor um cenário perfeito, dá pra pensar num quadro típico assim: enquanto os pimpolhos da pré-escola ralavam nas atividades pedagógicas, os pequenos com seus pais e cuidadores usavam seu tempo, na mais modorrenta rotina de crianças, para construir a capacidade afetiva para se relacionar com as pessoas e com as coisas, inclusive com o conhecimento.

Não seria exagero dizer que em casa, protegidos da pressão pedagógica sobre seus 5, 6 ou 7 aninhos de idade, as crianças puderam viver mais livremente as experiências emocionais que estruturam a vida. Num ambiente afetivo, puderam gostar da matemática e até de outras ciências. Daí, quando entraram na escola, o afeto continuou e, quem sabe, virou amor mesmo.

Pré-escolas servem para ensinar, claro, mas é sempre importante ponderar em que medida as atividades que desenvolvem a capacidade cognitiva podem limitar ou sufocar as experiências que permitem a construção de uma estrutura emocional sólida, sobretudo no fim da primeira infância.

Leia também no livro:
Pós-graduação para crianças ….. p. 246


David Moisés e Angela Minatti